18/02/2009

Termina sem acordo a audiência da Natura com índios ashaninka no Acre

Ashaninka na saída da Justiça Federal


por Altino Machado*

Terminou sem acordo a audiência de conciliação realizada na 3ª Vara da Justiça Federal no Acre, onde a indústria de cosméticos Natura é acusada pelo Ministério Público Federal (MPF) de exploração indevida de conhecimento tradicional da etnia ashaninka da aldeia Apiwtxa do Rio Amônea, na fronteira Brasil-Peru.

Além da Natura, estão arroladas na ação civil pública com pedido de antecipação de tutela a Chemyunion Química LTDA e o empresário Fábio Dias Fernandes, proprietário da empresa Tawaya, de Cruzeiro do Sul (AC), fabricante de um sabonete com ativo de murmuru.

Embora fosse uma audiência pública, os advogados da Natura recusaram a presença da imprensa quando o procurador da República Anselmo Henrique Cordeiro Lopes comunicou-lhes que jornalistas queriam acompanhar a tentativa de acordo promovida pela Justiça Federal.

- A nossa cliente não tem o menor interesse que a audiência seja acompanhada pela imprensa - alegou um dos dois advogados da Natura. Durante a audiência, eles reclamaram da repercussão negativa que o caso estava tendo para a imagem da fabricante de cosméticos. No final, os advogados da Natura sairam pelos fundos do prédio da Justiça Federal para evitar a imprensa.

A ação civil pública do MPF requer que o material pesquisado e produzido pelo empresário Fábio Fernandes seja devolvido à comunidade ashaninka, bem como apresente relatório detalhado de quais pessoas, laboratórios e empresas tiveram acesso ao material, as datas respectivas e as senhas para decodificação.

O MPF também pede que sejam declaradas nulas de pleno direito, e não produzam efeitos jurídicos, as patentes ou direitos de propriedade intelectual (inclusive marcas comerciais) concedidas ou que vierem a ser concedidas sobre processos ou produtos direta ou indiretamente resultantes da utilização de conhecimentos da comunidade ashaninka, especialmente três pedidos de patente e três pedidos de registros da marca Tawaya.

Na ação, o procurador da República José Lucas Perroni Kalil, pede a inversão do ônus da prova quanto à obtenção do conhecimento para as supostas invenções e marcas. O MPF pede que Fábio Fernandes, Chemyunion Química e a Natura sejam condenados à indenização no montante de 50% do lucro bruto obtido nos anos de exploração até o momento e pelos próximos cinco anos, a contar da data de trânsito em julgado da decisão final. Essa seria a maneira de possibilitar a equânime distribuição dos benefícios quanto à exploração de produtos com murmuru.

Outra exigência do MPF envolve o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, para que a Justiça determine que o órgão exija a indicação da origem do acesso ao conhecimento tradicional, e subseqüente equânime distribuição dos benefícios para todo e qualquer pedido de patente ou registro que tenha por objeto marca, invenção, desenho industrial ou modelo de utilidade originado de acesso a conhecimento tradicional.

Por fim, o MPF pede que Fábio Dias Fernandes, a Chemyunion Química e a Natura Cosméticos sejam condenados solidariamente a indenização por danos morais à sociedade e à comunidade, em valor a ser arbitrado pelo juiz Jair Facundes, da 3ª Vara da Justiça Federal no Acre. O valor seria revertido, metade à Associação Apiwtxa e metade ao Fundo Federal de Direitos Difusos.

- O murmuru chegou ao conhecimento da Natura após a pesquisa que era nossa. A empresa viu o potencial dele e passou a entrar no mercado a partir de um projeto da nossa comunidade. As empresas não querem reconhecer nossos direitos porque temem abrir um precedente para outras casos. Mas nós vamos continuar lutando por nossos direitos - afirmou o líder Moisés Ashaninka, cuja expectativa é de que o juiz federal julgue o caso nas próximas semanas, embora a data da audiência de instrução e julgamento não tenho sido definida.

A Convenção da Diversidade Biológica, aprovada no país através do Decreto Legislativo n. 4, ordena a justa recompensa às populações indígenas quando houver utilização de seu conhecimento. De acordo com o MPF, baseado em Gabriela de Pádua Azevedo, “a biopirataria é a apropriação gratuita (ou quase) de um recursos biológico e/ou de um conhecimento tradicional com valor comercial, sem qualquer tipo de retorno ao país ou a comunidade detentora daquele conhecimento - uma ofensa internacional”.


Moisés Ashaninka: "Nós vamos continuar lutando por nossos direitos"

* Altino Machado, Blog da Amazônia, 17/02/2009

17/02/2009

Acusada de biopirataria pelo MPF, Natura enfrenta índios na Justiça Federal



por Altino Machado*

Acusada de cometer biopirataria ao usar o ativo de murmuru (Astrocaryum ulei Burret), a indústria de cosméticos Natura enfrenta hoje uma audiência de conciliação na Justiça Federal, em Rio Branco (AC), decorrente de ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) em defesa dos índios ashaninka da aldeia Apiwtxa do Rio Amônea, na fronteira Brasil-Peru.

A ação do MPF, contra a exploração indevida de conhecimento tradicional ashaninka, começou em agosto de 2007. Ela também envolve o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), a Chemyunion Química LTDA, e o empresário Fábio Dias Fernandes, proprietário da empresa Tawaya, de Cruzeiro do Sul (AC), fabricante de sabonete de murmuru.

O MPF no Acre chegou a recomendar ao Inpi a suspensão do pedido de patente relativo à formulação do sabonete de murmuru, obtido a partir do conhecimento tradicional dos ashaninka. A patente de nº PI0301420-7 foi homologada pelo proprietário da empresa Tawaya.

De acordo com o MPF, a elaboração da manteiga de murmuru se deu mediante o acesso a conhecimentos tradicionais da comunidade, quando o empresário realizava projeto de pesquisa e levantamento de produtos florestais em parceria com a organização não-governamental Núcleo Cultura Indígena, sediada em São Paulo.

Ao final da pesquisa, Dias decidiu implantar a empresa de beneficiamento para produzir a manteiga de murmuru em escala industrial. Os índios forneceriam as sementes e teriam direito a 25% dos rendimentos obtidos pela empresa. Com isso, os ashaninka preocuparam-se em formar e capacitar a comunidade para exploração da semente de murmuru de forma sustentável, sem que o conhecimento da fabricação do produto fosse externalizado.

Murmuru: antepassado transformado em árvore

Inicialmente, a empresa Tawaya funcionava no Vale do Juruá, mas logo foi transferida para Cruzeiro do Sul, distante da área indígena, impedindo a comunidade de participar da fabricação. Tawaya é o nome que os ashaninka atribuem para o Rio Amôena, que foi percorrido durante as pesquisas feitas por Fábio Dias.

Uma vez iniciados os preparativos para a produção, o empresário passou a tratar os ashaninka como meros fornecedores de matéria-prima, deixando de cumprir com tudo que prometera durante os anos de convívio e de utilização do conhecimento tradicional da comunidade indígena.

O MPF sustenta que o empresário não tinha a necessária autorização para patentear o produto. A Medida Provisória nº 2.186/2001, que diz respeito à proteção ao conhecimento tradicional das comunidades indígenas e locais, associado ao patrimônio genético, anota o reconhecimento pelo estado do direito dessas comunidades para decidir sobre o uso de seus conhecimentos tradicionais, reconhecidos como patrimônio cultural brasileiro.

Na ação civil pública, o procurador da República Lucas Perroni Kalil assinala que o conhecimento tradicional refere-se a todo conhecimento, inovações e prática das comunidades indígenas e locais, concebidas a partir da experiência empírica adquirida através dos séculos, e adaptado à cultura e aos entornos locais.

- O conhecimento tradicional se transmite por via oral, de geração em geração e tende a ser de propriedade coletiva. Adquire a forma de histórias, canções, folclore, refrões, valores culturais, rituais, leis comunitárias, idioma local e práticas agrícolas, inclusive de espécies vegetais e raças animais. O murmuru tem origem lendária para os ashaninka. Não se trata de uma simples árvore, mas sim de um antepassado que foi transformado em árvore - acrescenta Kalil.

Ligações perigosas

Os ashaninka fazem diversos usos da palmeira de murmuru. O caule da palmeira serve para a construção de casas. A árvore produz palmito usado como alimento. Dos lugares em que são extraídos os palmitos, surge uma seiva, que é usada como alimento e também, misturada com urucum, como pintura facial. As folhas e as cascas da palmeira são utilizadas no artesanato. O óleo da castanha, extraído por meio do uso de um pilão, misturado com água, serve de medicamento para feridas e coceiras.

O empresário é acusado de ter realizado bioprospecção utilizando o conhecimento tradicional como guia, valendo-se de séculos de experiências com o murmuru para obter um produto com finalidade comercial. De 120 componentes à base de plantas usados na produção farmacêutica mundial, 75%, em média, têm o seu derivado ou associado a plantas medicinais que sempre foram utilizadas por comunidades.

- Na pior das hipóteses, ainda que se admita, a título de argumentação, que os ashaninka nada sabiam sobre o uso emoliente do murmuru, ainda assim foi usado conhecimento tradicional sobre o manejo sustentável do murmuru, fato que Fábio Dias tanto se gaba na publicidade de seu sabonete - argumentar o procurador da República.

Embora negue, o MPF sustenta que a empresa Chemyunion passou também a explorar produtos fabricados a partir do murmuru, após tomar conhecimento das atividades de Fábio Dias, que confirmou em laboratório as características emolientes do murmuru em meados de 1996.

- Como empresas voltadas a esse ramo específico de atuação, sempre atentas a “novidades” deste naipe, as demais demandadas privadas (Chemyunion e Natura) certamente passaram a estudar o uso de murmuru em seus produtos após a confirmação do demandado Fábio - afirma Kalil.

Reparação equânime de benefícios e de dano moral coletivo

Segundo o MPF, embora negue, a Natura Cosméticos S.A. acessou conhecimento tradicional sobre o murmuru. Em correspondência à Procuradoria da República, a empresa disse que utilizou “como fonte de informação de aplicação do ativo murmuru” obra de Barrera-Arellano. Segundo a Natura, ele seria o químico “inventor” da utilização de óleo e gordura de murmuru em pedido de patente formulado pela Chemyunion Química.

- Ademais, não é digno de crença que, como gigante do ramo, a Natura não tivesse obtido dados a partir dos resultados das pesquisas junto aos ashaninka - afirma o procurador da República.

O MPF pleiteia a reparação equânime dos benefícios e reparação de dano moral coletivo, sendo que o valor de indenização que venha a ser definido pela Justiça Federal seja destinado metade ao Fundo Federal de Direitos Difusos e metade à Apiwtxa, associação que representa o povo ashaninka do Rio Amônea.

O Inpi foi envolvido pelo MPF na ação civil pública porque não acatou recomendação para suspender o pedido de patente relativo a formulação do sabonete de murmuru. O MPF tenta convencer o Inpi a conferir patente ou registro aos seus pleiteantes daquilo que tiver sido originado a partir de acesso ao conhecimento tradicional somente após informada a origem do conhecimento tradicional e realizada a repartição equânime dos benefícios.

* Altino Machado, Blog da Amazônia, 17/02/2009